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Japão (Viela17)

A vida e suas armadilhas!

Atualizado: 23 de set.

Desde meus 8 anos de idade, vivi coisas que poucas pessoas nem sonharam em vivenciar. Me lembrei agora de um fato que é umas das coisas mais especiais que aconteceram em minha vida.

Com 8 anos eu já fazia uns trampos para juntar dinheiro, nem era por necessidade, nessa época tínhamos uma vida razoavelmente tranquila, meus pais tinham comércios, bar, restaurante, borracharia, barbearia, mercearia e várias outras paradas, incluindo o comércio que ele tinha o maior carinho, que era um prostíbulo onde eu engraxava sapatos, pois desde moleque eu já tinha no DNA de rua a malandragem. Fazia parceria em porcentagem com as mulheres que trabalhavam nesse recinto, meu pai inventava de tudo, ele nunca ficava parado, o foco era sempre as numeradas, rolava até um motorista particular, pois meu pai tinha alguns carros mas não sabia dirigir e nem se interessava em aprender. O engraçado é que todo carro dele tinha um nome que ele batizava, o que eu mais gostava de andar era a Lady Laura, uma Kombi branca com frisos pretos que era toda papagaiada.


Quando chegou o ano de 1983, meus pais se separam, aí a chapa esquentou, tudo mudou, aquela vida razoável, virou um pesadelo. Minha mãe que sempre foi uma guerreira, herdou os 6 filhos e toda responsabilidade para criá-los. Meu coroa era um cara muito machista, logo meteu o pé de volta ao nordeste e só retornou para ver os filhos uns 14 anos depois.

Passei por várias provações, fiz um acordo com minha mãe que eu ajudaria ela em tudo e quando eu completasse 18 anos, eu teria a liberdade de fazer o que bem entendesse com a minha vida, ela super topou.


Meu pai deixou alguns imóveis para minha mãe, que por falta de conhecimento, acabou vendendo tudo e o dinheiro virou fumaça, durou pouco mais de 1 ano.

Fomos morar de aluguel no setor O, coincidentemente na mesma rua onde morava o DJ Saboia (RIP). Esse cara foi essencial em minha vida, não somente nesse momento, mas em várias etapas da minha vida artística que viriam anos depois.

Putz, que loucura se tornou minha vida, parei de estudar para correr atrás das coisas e ajudar mamãe, ela voltou a trabalhar de diarista, profissão que ela conseguiu ao chegar no início de Brasília no alto dos seus 15 anos, analfabeta e nascida em Santa Maria da Vitória, no estado da Bahia, onde ela só voltou para rever onde nasceu, quando eu, já cantando rap, pude proporcionar a ela.


Foi um momento tenso, mas gostoso de ter vivido. De 1983 a 1990 eu ralei demais, fiz literalmente de um limão uma limonada, que deveríamos tomar em doses homeopáticas, para durar nesses momentos complicados.

Vivi cada dia como se fosse o último, eu sempre fui correria, chegou um momento eu que eu vendia chocolate na rodoviária de dia e a noite vigiava carro em um estacionamento no Lago Sul, onde tinha uma boate que a playboyzada se divertia quase todos os dias da semana. Chegou um momento em que eu só encontrava minha mãe aos sábados, pois geralmente quando chegava em casa ela já estava dormindo. Eu com pouca idade já me virava de uma forma brutal.


Me lembrava todo dia dos conselhos da minha mãe que sempre me falava: "Não criei filho para chorar, criei filho para fazer a diferença, não precisa sorrir, só não chora para não atrapalhar nosso dia." Eu criei uma casca, até os malucos que cheiravam cola na rodoviária, que todo mundo tinha medo, eu batia de frente. Nessa época tinha um cara que tinha o apelido de Careca, ele era uma espécie de guru da gurizada que circulava no centro de Brasília praticando furtos. Ele sempre avisava pros moleques para não mexer comigo, não porque eu era o brabo, sempre que ele estava de rolé na rodoviária, parava para me ouvir contar as histórias da minha vida e por isso conquistei o respeito dele.


Foram cada dias complicados, eu até resolvi não lembrar da minha infância, pois ao comparar com o que estávamos vivendo, era totalmente o contrário de tudo que vivemos no passado.

Eu era conhecido entre meus amigos de rua como o Magrelo, pesava no máximo 36 kilos, sentia fome a todo instante e disfarçava com bastante água.

Cheguei até aqui para lembrar de um fato que marcou minha vida....


Um certo dia eu estava perambulando pelas ruas da Asa Sul para ver se rolava pelo menos um carro para lavar e fazer um dinheiro. Nesse dia eu saí de casa e não tínhamos nada para comer, aluguel atrasado, minha mãe desesperada, entrei em um ônibus e fui à caça.

Entrava e saía pelas ruas extensas da Asa Sul e nada, até que eu vi uma senhora com uma mangueira ligada jogando água em seu carro, parei e ofereci ajuda. Como eu estava muito mal vestido, ela ficou bolada, mas à distância perguntou: "Onde você mora garoto?" E eu respondi imediatamente, que estava rodando as ruas para arrumar algo para fazer e levar comida para minha casa e não queria esmola, queria somente trabalhar.

Ela então me convidou para lavar o carro dela com a promessa que me daria uma grana e algo pra comer. Meu dia estava salvo.

Lavei o carro dela, quando terminei, ela perguntou se eu não queria tirar o lixo e lavar a frente da casa, lógico que topei, ela estava dentro da casa fazendo almoço, o cheiro era tão bom que matava um garoto como eu mais que a fome que eu sentia. Por isso que nunca tive medo da fome, ela só iria me matar se eu não a perseguisse. Ralei demais esse dia. Um certo momento ela falou que iria trazer meu almoço, colocou a comida em um prato e levou pra mim, comi com tanta vontade que nem respirava. Ao terminar entreguei o prato para ela e voltei aos meus afazeres, deixei não somente o carro dela, mas a frente da casa e os fundos um brinco.

Ela fiscalizou tudo que fiz, entrou em casa e ao voltar, trouxe uma grana para mim. Não era muita coisa, mas dava para comprar arroz e feijão e se pá um frango para levar pra casa, eu agradeci e ela voltou a perguntar: "Menino, você não me respondeu onde você mora." Eu disse: "Ceilândia", notei que ela meio que arregalou os olhos, mas acredito ter sido impressão minha, então ela enfim me convidou para entrar na casa dela para tomar água e ir ao banheiro antes de ir embora. Quando estava preparado para ir embora, ela veio com um monte de sacolas, tinha de manga a pão, um pouco de tudo. Olhei para ela e agradeci, lembro que falei para ela: "Até breve" e ela respondeu: "Espero encontrá-lo numa melhor" e então fui embora feliz e com o sentimento de missão cumprida.


Não somente esse momento foi especial, mas esse ano foi inesquecível. Era 1985 e eu tinha 14 anos, fim da era de chumbo causada pelo regime militar e o que se via era que o povo estava com a esperança restabelecida pelo ressurgimento da democracia.

Cheguei em casa e minha mãe ao me ver com tanta sacola veio logo intimando: "Onde você conseguiu isso tudo?" A fiscalização era constante, expliquei tudo para ela, que ficou feliz, falei da senhora que foi super legal comigo, lembro que ao final disse para a mãe: "Um dia levo a senhora para conhecer ela", prontamente minha coroa respondeu: "Mulheres como essa, dificilmente você encontrará novamente meu filho, ela foi um anjo que com certeza ficará em sua memória mas você nunca mais a verá novamente."


Minha vida seguiu, fiz todo corre do mundo até completar meus 18 anos. Resolvi cantar rap, minha vida mudou totalmente, as coisas aconteceram muito rápido na minha vida, até que fomos convidados a participar de um protesto contra a morte do índio Galdino em 1997. Ele morreu de forma cruel, alguns playboyzinhos do Plano tacaram fogo nele quando dormia em um ponto de ônibus. Foi uma das apresentações mais pesadas que fizemos. Quando garoto eu era observador e quando me tornei um rapper, despejava toda minha revolta nos palcos, pois eu conhecia como era a realidade no centro do país.

Fizemos a apresentação e notei que na frente do tablado, estava uma senhora idosa branca que não parava de me olhar, ela balançava a cabeça de um lado para o outro. Após terminar a apresentação, ela veio até mim e disse: "Há uns 12 anos, conheci um garoto que se ofereceu para lavar meu carro", antes que ela seguisse com essa história, eu a abracei com lágrimas nos olhos e disse: "era eu senhora."

Depois disso trocamos contatos, passamos uma tarde falando sobre tudo que eu passei para chegar até ali, ela me apresentou seus filhos e o marido e foi uma dia inesquecível. Ainda mantivemos contato por mais dois anos, quando ela nos deixou e eu estava em São Paulo e uma filha dela me ligou dando a notícia. Imediatamente fui ao aeroporto, comprei uma aérea e voltei para Brasília e deixei o meu adeus e assim me despedi daquele anjo. Fui ao sepultamento e fiquei distante, chorando e agradecendo a Deus por aquela alma bondosa e assim findou-se nossa história.


Dona Mirtes, descanse em paz, nunca me esquecerei da senhora e de nossa amizade, que pouquíssimas pessoas sabiam que existia até agora, te amararei para sempre.

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